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Silvânia Costa: `Sou recordista mundial, gente!`

Silvânia Costa, de 29 anos, vive dias de ansiedade e extrema confiança. A sul-mato-grossense participará de sua primeira Paralimpíada, e como favorita. Ela é a recordista mundial no salto em distância entre atletas paralímpicos na categoria T11, aberta aos totalmente cegos ou próximo disso — e Silvânia tem apenas 2% de visão. Em julho, ela cortou o ar e pousou no tanque de areia a 5,46 metros. Para efeito de comparação, a melhor marca de uma esportista convencional, estabelecida no longínquo ano de 1988 pela soviética Galina Chistyakova, é de 7,52 metros. Na Olimpíada do Rio, a americana Tianna Bartoletta levou o ouro com 7,17 metros.
Com tanta confiança e um pouco de ansiedade, Silvânia realmente sai do sério com algo inofensivo para a maioria dos humanos: chinelos fora do lugar. “Chinelos longe do pé da cama me fazem tropeçar, cair e me machucar. É como copo fora da pia. Os maiores acidentes para mim sempre acontecem por causa desses objetos”, diz a atleta.
Esqueça a aparente fragilidade e, no dia 16 de setembro, ligue a televisão para acompanhar Silvânia no Engenhão. Ela ainda disputará o revezamento 4 x 100 metros. E um irmão dela, Ricardo, também cego, tem boas chances no salto em distância (claro!), ostentando a segunda melhor marca do mundo. Entre todos os 4 350 atletas distribuídos nas 23 modalidades que serão disputadas na Paralimpíada, de 7 a 18 de setembro, VEJA elegeu Silvânia como símbolo por suas qualidades atléticas, pela história de vida e pela postura altiva. Disse Andrew Parsons, presidente do Comitê Paralímpico Brasileiro: “Não existe a ideia de que atletas paralímpicos sejam coitadinhos”. Bem-vindo, portanto, à trajetória de uma mulher muito interessante.
A foto na página ao lado ajuda a entender o comportamento da campeã e a desmontar a imagem um tanto clichê, ainda que real, da superação como sinônimo de vitória. Silvânia adora celebrar sua evidente beleza. Tem um corpo firme, torneado, um sorriso que é um salto nas alturas e um linguajar alheio ao politicamente correto. “Nos dias de prova, vou estar com uma beleza bem negona. Cabelo para o alto, maquiada e com meus enfeites”, diz ela. O cabelo, avolumado por 55 centímetros de aplique, ela o penteia de frente para o espelho. “Atualmente, não enxergo quase nada. Mas é um hábito de quando eu ainda via. Só comecei a ficar cega aos 10 anos.”
Silvânia, seus dois irmãos e mais duas primas do lado paterno sofrem de uma doença congênita que destrói as células da retina, sobretudo as do centro do olho, responsáveis pela nitidez. Para esse tipo de degeneração, não há cura nem tratamento. “E, infelizmente, ainda não são possíveis os transplantes de retina. Quem tem o gene causador da doença, o ABCA4, perde muito da visão até os 20 anos”, diz Sérgio Pimentel, oftalmologista e chefe do serviço de retina da Faculdade de Medicina da USP. “Quando fiquei cega, achei que o mundo tinha acabado. Hoje sei que ele estava só começando. Sou recordista mundial, gente!”, vibra Silvânia, que, no entanto, aponta os sofrimentos pelos quais ela e a família passaram. “Minha mãe teve depressão e meu pai caiu na bebida.”
Em julho deste ano, Silvânia saltou 5,46 metros, a melhor marca de todos os tempos para uma atleta cega
Em julho deste ano, Silvânia saltou 5,46 metros, a melhor marca de todos os tempos para uma atleta cega (Daniel Zappe/MPIX/CPB/VEJA)
O esporte apareceu para a atleta de Três Lagoas por precisão, e não por boniteza. Ela tinha 19 anos, um bebê e acumulava dívidas. Perdera o emprego por causa da diminuição paulatina de visão. Silvânia soube que haveria uma corrida de rua em Campo Grande e resolveu se arriscar. “Nunca tinha corrido na vida. E adivinha: ganhei. Levei o prêmio de 300 reais, paguei ao leiteiro, a quem eu devia, e depois passei uma semana internada no hospital.” Na sequência, vieram outras corridas urbanas, nas quais ela sempre se destacava, até que foi descoberta pelo Comitê Paralímpico Brasileiro, há poucos anos, e convidada a treinar em São Paulo. “Meu biotipo, que tem bastante massa muscular, é bom para esportes que exigem força e explosão. Além disso, adoro a sensação de voar. A combinação desses dois fatores me faz ser boa.”
O salto de Silvânia, que compete vendada, é todo calculado. Começa com a atleta localizando a direção da reta em que tem de correr, por meio de chamados de seu treinador, que fica à frente da caixa de areia. “Ela dá nove passadas e eu conto cada uma delas sempre que sua perna esquerda toca o chão. No número dez, a Silvânia voa”, explica Amaury Veríssimo, técnico de velocidade do Comitê Paralímpico Brasileiro. “O grande problema para os atletas cegos é o barulho da torcida. Como eles se orientam pela audição, especialmente para ouvir o treinador, o ruído faz com que confundam as direções. O mesmo acontece com o vento. Quando ele muda de sentido, o som da nossa voz é desviado”, explica Veríssimo, que já tem meios de preparar os atletas para driblar esse obstáculo. “Botamos gente conversando durante os treinos, e a psicóloga do comitê sugeriu que puséssemos também gravações de barulho da torcida.”
Diferentemente do salto em distância, em que Silvânia avança sozinha, no revezamento 4 x 100 metros ela é acompanhada de um atleta-guia. “O meu olho, nessa categoria, é um quase irmão”, diz a corredora, referindo-se a Wendel Silva, que treina com ela há quatro anos. “O único ponto em que Silvânia ainda pode ganhar é ter menos vergonha de perguntar as coisas. Como ela é muito independente, não quer mostrar que não entendeu algo. Ela não cola em mim”, diz Silva, que, ao lado de outros três guias, será o responsável pelas trocas de bastão no revezamento.
Silvânia não cola mesmo em ninguém. Sozinha, vai à padaria de manhã, cozinha e pega ônibus. Quando o destino são os treinos, segue a pé, com o irmão, por um caminho que leva oito minutos. “Nós passamos por semáforo e avenida. Não temos medo de nada. Só de bicicletas, porque não conseguimos ouvir o barulho dos pneus delas”, diz Ricardo, que vai participar do primeiro dia de provas do atletismo da Paralimpíada, na quinta 8. E tem mais gente na família com pretensões de campeã. A filhinha de Silvânia, de 10 anos, e sem diagnóstico de deficiência, já é medalhista escolar na mesma modalidade da mãe e do tio. “Aqui em casa, é todo mundo para o alto”, diz a para-atleta campeã, ao soltar o sorriso gostoso de quem, por meio do esporte, se fez igual aos outros. Nas próximas duas semanas, o Rio, o Brasil e o mundo reviverão pela TV a alegria de agosto — com novos nomes, nem tão conhecidos, mas capazes de surpreender.

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postado por Altinhoshow

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